Sábado, 7 Junho, 2025
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Coimbra – A eterna saudade

Nos meus tempos de estudante, muitas vezes deixava a Velha Alta e ia estudar  no Café Internacional, a dois passos da Estação Nova. Era obrigatório passar em frente ao Hotel  Astória, à época o mais chique da cidade. O que acontecia para lá daquela porta giratória deixava-me a patinar no vazio das dúvidas e incertezas, enquanto me afundava  no mar imenso da curiosidade: uma panóplia impenetrável para um estudante que vivia duma pequena mesada contada, recontada, esticada até ao centavo. O Hotel Astória era, certamente, o ponto de encontro de homens de negócios, de gente da alta roda – a socialite da altura.

Punha-me a adivinhar intenções. Oh, se adivinhava! Facadas e facadinhas em matrimónios que não passavam de aparências sadias. O Astória, onde nunca entrara, deixava-me embasbacado pela magia do sonho. Nunca me atrevi a passar para lá daquela porta fascinante que me apetecia, oh! se me apetecia , empurrar de supetão.

Imaginava o hall de entrada, a recepção, a sala de estar – um salão enorme com um bar onde não faltavam prateleiras recheadas de bebidas espirituosas que nada tinham a ver com o bagaço dos vinhedos da Quinta Branca (aninhada nas encostas soalheiras das serras desabridas do Seixo Amarelo) e que degustávamos nas noites de temporal na Real República Corsários das Ilhas; imaginava sofás aveludados, chaises  longues,aqui e além uma otomana para repouso e curtimento das grandes farras e jantaradas regadas a tintos e brancos e vinho do Porto envelhecido  em cascos de carvalho; nas paredes adivinhava quadros de pintores que os anos tornariam célebres: óleos, aguarelas, serigrafias, litografias e até bustos de figuras mediáticas. De cigarro aceso na boca, sorria e dava asas ao sonho.

Sexta-feira, dois de Maio de dois mil e catorze. Num dia de Verão antecipado, com o sol a lampejar nas águas amansadas do Bazófias, o sonho tornou-se realidade. Dava-se início às comemorações dos cinquenta anos do nosso Curso Médico. Ponto de encontro – o Hotel Astória.

Com emoções incontidas passei para lá daquela porta giratória que tantas vezes me despertara sorrisos de sol poente. Tal como imaginara cinquenta anos antes , lá estava o hall de entrada e o salão enorme povoado de móveis antigos , poltronas confortáveis  e muitos, muitos quadros assinados por pintores famosos (Almada Negreiros, Amadeu de Sousa Cardoso, Júlio Pomar e tantos outros). Sorri, sorri largo enquanto ripava lembranças e entrançava fantasmas passados.

Rápido, o recepcionista de sorriso lustroso e sotaque brasileiro procedeu à nossa identificação. 

Entrei no velho elevador. À minha frente, um banco de couro surrado. Por momentos voltei a recuar no tempo e imaginei o ascensorista, vestido com uniforme de chefe de estação, a dobrar-se em vénias e sorrisos contrariados, solícito a abrir e a fechar a porta da gaiola dourada quando as meninas , de olhos lambuzados de rímel, entravam dependuradas nos braços dos amantes. De olhos quedos no chão, fingia não reconhecer as caritas larocas a desfazerem-se em sorrisos mimados. Uma vez por outra, uma olhadela de raspão para os seios meio despidos a sobressaírem, túmidos, dos soutiens bem espartilhados.

Algumas, mais atrevidas, tomavam expressões lúbricas. Tentavam provocá-lo. Exalavam sensualidade desmedida. O ascensorista levantava a pala do boné para as ver melhor. Sorria. Nada mais fazia. Nada mais podia fazer. Respirava fundo. Só voltava a respirar quando, de olhos semi-cerrados, as seguia já de costas, a caminharem gingonas até à porta giratória. Depois, voltava à primeira forma e tomava de novo uma atitude profissional.

De vez em quando uma voz autoritária, cavernosa, a tresandar a conhaque, ciciava-lhe ao   ouvido:”Então que brincadeira é essa? … Tire os olhos da fruta que já não é para os seus dentes cariados. Cuidado! Muito cuidadinho, senão faço queixa ao seu patrão e você vai direitinho para o olho da rua com o rabo entre as pernas …” O ascensorista calava-se. Escolhia o caminho dos pobres, dos fracos, dos oprimidos.

No segundo andar, ao fundo dum corredor sombrio onde, certamente, as meninas já iam quase despidas, o nosso quarto, o número 205, encolhido entre quatro paredes, mobiliário antigo e um toque de modernismo ( televisão a cores e aparelho de ar condicionado) tinha janela e varanda viradas para o Mondego. Ao longe o Mosteiro de Santa Clara, enternecido, a olhar os choupos – guardiões do rio.

Sábado. Três de Maio. Pequeno almoço às oito da manhã. O dia prometia azáfama propositada.

Do Curso, fomos os primeiros a chegar à sala a despertar no silêncio duma manhã tranquila. Pouco a pouco iam surgindo os hóspedes, alguns com cara de mal dormidos. A empregada, vestida de negro, gola branca e avental da mesma cor, desfazia-se em trabalho. De repente, quando menos contávamos, olhámo-nos bem no fundo dos olhos e abrimos a boca de espanto: um turista de porte atlético, vindo certamente da terra de Sua Majestade, enquanto se dirigia para a saída, numa atitude de besta enfartada, espreguiçou-se desalmadamente duas ou três vezes.

Estupefacto com tamanho descaramento, pareceu-me ouvi-lo dizer: “I beg your pardon”. Mas não. Analisando bem a polifonia exuberante, cheguei à conclusão de que fora um mero arroto.

Com palavras domesticadas murmurei: “Filho da … “ e acrescentei :” Que seja pelas alminhas”.

Enquanto eu continuava a resmungar baixo, a Nina deitava-me olhares significativos. Não me calei. Fui dizendo: “ Estes tipos ingleses, alemães e quejandos julgam-se donos do nosso país e tratam-nos como se fôssemos uma corja de primitivos labregos”.

Acalmada a tempestade, saímos como entrámos: mudos como patos mudos.

Lá fora o sol cativava. Em traje de passeio seguimos direitos à Portagem. Cumprimentámos o Tira-dentes, majestoso na sua estátua.Recordámos o Torga, imortalizado numa modesta placa adesivada à frontaria do prédio onde tivera o seu consultório.

Antes de entrarmos na Ferreira Borges, não resistimos à tentação e, numa pastelaria à direita, comprámos queijadinhas e pastéis de Tentúgal que se fabricam na terra do mesmo nome e que fazem as delícias de quantos por lá passam a caminho da Figueira da Foz. Ala que se faz tarde. Esperava-nos a Porta Férrea, Os Gerais e a fotografia da praxe.

Perto do cinema Avenida, os pólens dos plátanos agitados pelo vento pareciam flocos de neve a acariciarem com leveza a negrura do asfalto. À nossa frente, divertidos, meia dúzia de ganapos caminhavam em passo estugado. Enquanto tivemos fôlego, fizemos das tripas coração e seguimo-los. Depois, depois … quando as forças começaram a fraquejar, perdemos-lhes o rasto.

Um sorriso manso aguarelou de vermelho os lábios da minha companheira e a boca entreabriu-se-lhe como uma romã madura. Apeteceu-me beijá-la, ali mesmo, no meio de tanta gente! As pessoas que passavam rua abaixo, rua acima, não me perturbavam. Não me incomodavam absolutamente nada. Aproximei-me e ela, oh, meu Deus! disse: “Deixa-te de brincadeiras” . Olhou-me com uma carícia doce e continuou:” Achas que tens idade para te pores nesses preparos?”

Chegámos à Associação Académica. Grupos de estudantes de capa e batina , já meio entornados, algaraviavam alto, argumentavam sobre a Queima das Fitas. Entrámos na rua Padre António Vieira. Já cansados, ultrapassámos o Patronato Feminino, a rua da Matemática, os Corsários das Ilhas (a minha república que guardo no coração). Do outro lado, a soleira da porta do Museu onde, tantas vezes, altas horas da noite, com as estrelas a chisparem o céu, o Zeca e o Adriano faziam gemer guitarras e, com as suas vozes cristalinas, violavam o silêncio da  madrugada.

Foi uma lufada de saudades . Um mundo de recordações apoderou-se de mim: recordações da Velha Alta, dos longínquos tempos de sessenta e dois. Os olhos enevoaram-se,comovidos.

Soltaram-se gargalhadas junto à Porta Férrea. Rostos lavrados que já dobraram a esquina dos setenta, angústias adormecidas, redobraram esperanças. Regressámos ao passado. Soltam-se eferriás! Agitam-se fitas amarelas desbotadas, exibem-se cartolas, esvoaçam capas negras como andorinhas a saírem dos beirais dos telhados. Eferriá! Eferriá! Chiribitatá tatá! Urra! Urra! Era assim a modos duma Coimbra parada no tempo.

De súbito : “Companheiros, vamos para a fotografia da praxe” – gritou o Humberto Rocha.

Numa algazarra desmesurada surge o Pofessor Brito, de bengala e cartola. “Para a fotografia” – retornou, impaciente, o Humberto.

Enquanto as articulações gemiam protestos e alguns dos figurantes se atrasavam, El Gitano, tal  como um oficial de alta patente a comandar uma fantasiosa carga de cavalaria, não se cansava de gritar: “Companheiros,vamos para a fotografia da praxe!

Incendiados os Gerais, a Torre da Universidade fez uma vénia, vergou-se, submissa. O charme da festa não se apagou. Reacendeu-se a caminho do Penedo da Saudade, uma mão que não se despega doutra mão. Uns de carro, outros a penates lá seguimos . Arcos do Jardim Botânico onde muitos de nós demos os primeiros passos nas fantasias do amor: um beijo à socapa, um gesto mais atrevido, um abraço mais apertado, um sorriso de esperança.

Finalmente o Penedo da Saudade: em prosa poética e em verso, pedaços de nós cinzelados na pedra fria de granito, saudades de tanta gente que passou por Coimbra. Enquanto o Verol se desempoleirava caindo desamparado, e o Orlando Vieira acompanhado pelo seu amigo Manecas, irmãos colaços que mamaram o leite da mesma Mãe – a África apetecida – seguiram numa ambulância a caminho das Urgências, uma poalha de sol filtrava-se, tímida, por entre os ramos das árvores. Aconteceu poesia:

Caminheiros do tempo / Aqui chegámos

Senhores do mundo/ Senhores da vida

Filhos criados / Tempos passados

Saudades sentidas / Na eterna Coimbra

No encontro do tempo / No crepúsculo da vida

Rui Brito

Lá ao fundo, de novo Coimbra. O Calhabé, ajoelhado, ouvia e meditava. Redobrou a esperança de voltarmos ao passado. De novo soaram eferriás.

Almoço no restaurante do Museu Machado de Castro, varanda corrida debruçada sobre o Mondego, a Portagem, a Ponte de Santa Clara e o Parque da Cidade (ponto de encontro na Queima das Fitas).

Após morosa e erudita visita ao Museu e às Criptas, recentemente devassadas, regressámos ao pombal – o Hotel Astória.

Nos lençóis brancos a cheirarem a lavado dormimos o sono dos justos. Repousámos. Arranjámos coragem para, no dia seguinte, atravessarmos a ponte. Almoço no velho e lendário Pinto d’Ouro. Na penumbra da memória lembrámos tanta felicidade esbanjada nos verdes anos da nossa juventude.

Terminado o repasto, atravessámos de novo a Ponte de Santa Clara. O pano desceu sobre o palco. O sonho apagou-se. Já as rodinhas dos tróleis gemiam melodias de saudades, cada um de nós seguiu os seus destinos  com desejos de que no próximo ano estivéssemos todos presentes para comemorar o nosso Encontro. Ali bem perto, na paragem do autocarro, o sorriso cândido e doce duma criança era o sorriso de alguém que ainda acredita na vida.

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